Terra no Espaço

No dia 30 de Julho publiquei neste blog um comentário «Conhecer a Terra ou o Espaço» que gerou alguma controvérsia, incluindo comentários neste mesmo blog, um post e comentários no blog «astro.PT» e um esclarecimento por parte dos moderadores deste blog. Depois da troca de comentários em ambos os blogs, relembro que a questão que pretendia ser a central do post original, aliás indicada pela categoria em que foi inserido, era o financiamento científico.

Permitam-me assim esclarecer e clarificar (se quiserem, corrigir) o comentário original, num espírito de reconciliação académico.

1. Opinar sobre prioridades de financiamento científico não constitui um ataque ao mérito científico das áreas que se possam considerar menos prioritárias. É uma avaliação sobre onde devem ser investidos prioritariamente recursos financeiros e humanos.
Para dar um exemplo diferente do post inicial (mais uma vez uma opinião pessoal, e sem querer travar qualquer analogia com o debate face à Astrobiologia): contraste-se o financiamento da indústria farmacêutica em áreas como a cosmética, retardamento do envelhecimento, obesidade, e desenvolvimento de fármacos para doenças mais típicas de países mais desenvolvidos, com o investimento na investigação de doenças infecciosas que ocorrem primariamente em países menos desenvolvidos e que são responsáveis por milhões de mortos anualmente  (e.g., cólera, disenteria, lepra, malária, etc). Para mim há aqui uma repartição desequilibrada e lastimável de financiamento, o que não equivale a dizer que eu ache que não deva haver investigação sobre doenças cardiovasculares ou que esteja a atacar o financiamento nessa área. É sim, em parte, uma crítica ao critério, neste caso económico, que jaz por de trás deste desequilíbrio. Espero que este exemplo, numa área distinta, ajude a entender que falar sobre prioridades de financiamento não equivale a desvalorizar o mérito científico (ou social) de uma área que se opine ser menos prioritária.

2. Outra clarificação diz respeito à frase final do post original  (que corrigi a posteriori): «Deixemos a vida extra-terrestre para a ficção científica». Essa frase  vinha no seguimento de referências à descoberta de vida inteligente noutros locais do Universo. Admito que a frase não foi suficientemente clara. Não pretendia ser um ataque transversal à Astrobiologia. Permitam-me a correcção: «Deixemos a vida inteligente extra-terrestre para a ficção científica», para assim separar o que entendo ser a componente principal da Astrobiologia – busca de evidência de vida, elementos pré-bióticos, e condições propícias para a evolução de vida (como a existência de água) – de outros esforços, nomeadamente o de encontrar vida inteligente extra-terrestre. Considero a primeira um empreendimento científico interessante, digno de ser seguido e financiado e, como referido no post original, uma área que já tem dado resultados empolgantes. Por contraste, considero o empreendimento de procurar formas de vida inteligente com a qual possamos travar comunicação um esforço pouco prioritário, dada a improbabilidade de tal vir a acontecer. Foi relativamente a este empreendimento que invoquei a ficção científica e a forma como a comunicação social por vezes apresenta a exploração espacial. A minha observação prendia-se com o facto de a exploração espacial poder beneficiar dos sentimentos fomentados por filmes e séries que apresentam cenários irrealistas. Não impliquei a própria Ciência em qualquer conspiração ou manipulação propositada. Não faço qualquer associação entre Astrobiologia e ficção científica, não há qualquer confusão a esse respeito da minha parte e lamento se o texto permitiu essa leitura.

3. Feita esta distinção, reitero: não pretendia atacar a Astrobiologia, que considero ser uma legítima área científica merecedora de ser prosseguida e financiada. Desejava sobretudo chamar a atenção para o nosso desconhecimento da topografia e biologia dos fundos marinhos terrestres que representam 70% da superfície do nosso planeta, onde se estima existirem milhões de espécies de bactérias marinhas desconhecidas pela ciência e que muito poderiam contribuir para o entendimento da origem e evolução da vida terrestre.
Naturalmente que a escolha não é entre financiar a Biologia Marinha e a Astrobiologia. A escolha de financiamento é feita entre todas as áreas (e nem há um único bolo de financiamento, nem são usados apenas critérios científicos). A ponte entre as duas áreas foi feita porque o desconhecimento dos nossos fundos marinhos contrasta com o conhecimento que já possuímos sobre a topografia da Lua e de Marte.

4. Há uma questão, que considero menor, de discórdia sobre a amplitude e definição do campo da Astrobiologia.
A Astrobiologia compreende o estudo da vida no Universo, que inclui naturalmente a Terra mas entendo que a Astrobiologia, enquanto área científica, compreende mais especificamente o estudo de vida extra-terrestre. Não será por acaso que esta também seja referida como Exobiologia.

Se considerarmos ser objecto da Astrobiologia o estudo da vida tanto na Terra como fora dela, então esta seria indistinguível da Biologia, ou in extremis a Biologia seria uma sub-categoria da Astrobiologia, o que não me parece ser muito clarificador.

Naturalmente, há sobreposição entre as duas áreas, mas creio que existem benefícios em utilizar os dois termos para designar áreas de investigação distintas, independentemente das ligações que inequivocamente existem entre elas. Se o estudo sobre extremófilos terrestres está dentro do campo da Biologia (terrestre) ou da Astrobiologia (no sentido mais restrito) parece-me de interesse menor. Ambas as áreas podem aprender muito com o estudo das condições extremas em que é possível existir vida.
Para tentar ser o mais claro possível: considerando a natureza um todo contínuo, as áreas científicas são categorias históricas geradas pelo Homem. Há lugar para a existência de Biologia, Astrobiologia, Astronomia, etc. As áreas têm sobreposições sendo de fomentar a interdisciplinaridade. A delimitação das áreas é uma questão de categorização da ciência. O meu comentário, mais uma vez o repito, tinha como ponto central prioridades de financiamento científico. Usei como instrumento o contraste entre o estudo da Terra versus o do (resto do) Espaço, duas categorias ou áreas de estudo.

5. Relativamente à evocação de Carl Sagan, foi uma nota meramente biográfica sobre o meu percurso intelectual, em que pretendia ilustrar o impacto pessoal que este teve sobre mim enquanto divulgador científico. Acrescentei porém que à medida que o meu interesse e conhecimento pela biologia, pela questão da origem da vida, foi crescendo, comecei a divergir cientificamente das opiniões de Sagan, como seja o esforço em procurar indícios de vida inteligente extra-terrestre, do qual ele foi promotor. Evocando ainda Sagan para voltar à questão das prioridades de financiamento: no seio da NASA, Sagan foi, por exemplo, apologista de mais missões robóticas em oposição ao programa do vaivém e Estação Espacial. Registo isto apenas para ilustrar como opiniões sobre decisões sobre financiamento não implicam “ataques” mas diferenças de opinião sobre prioridades.
Espero com isto ter clarificado o objectivo do post inicial, e espero que as relações entre os comentadores dos dois blogs possam no futuro ser mais positivas, contribuindo para o objectivo comum da divulgação científica.

Publicado por André Levy
Deixemos a vida extra-terrestre [acrescentado a posterior: em particular, vida inteligente] para a ficção científica.

6 responses to “Terra no Espaço

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  3. Olá,

    Eu penso que continua a haver um problema de interpretação de textos.
    O André Levy continua a colocar o problema como se fosse uma matéria de simples opinião. Quando o debate não era sobre a sua opinião sobre o financiamento.
    Cada qual pode ter as opiniões que quiser. Da mesma forma que tenho alunos que têm A ao opinarem que não existem ETs e outros alunos que têm A ao opinarem que existem milhões de civilizações ETs avançadas. E o mesmo para os que reprovam. A opinião é indiferente. O que se espera é que saibam pensar e argumentar em defesa das suas opiniões.
    O problema do seu texto e da sua defesa nos comentários posteriores, como lhe fiz notar já por várias vezes, é que o André Levy fez afirmações erradas, e demonstra um desconhecimento básico do tema sobre o qual quer opinar.
    Esse é que foi o problema do seu texto, e posteriores “justificações”. Não tem nada a ver com a sua opinião. Tem a ver com não saber informar-se sobre o tema, preferindo enveredar pelas “popular misconceptions”.
    O mínimo que se pede é uma opinião informada.

    Sinceramente, estava à espera de um texto a defender o financiamento para a sua área. Mas este é mais um texto a justificar/explicar as coisas que disse no outro texto, e comentários posteriores.

    Registo com agrado o seu texto conciliatório, e felicito-o por isso. Mas o meu problema não é em termos de conciliação ou não. O meu único problema nesta história toda é dar-se as informações correctas. É só.
    Concordo com 90% do seu texto. O meu problema são os 10% em que se o André Levy não sabe sobre a matéria, não deveria opinar como se soubesse.
    Deixe-me dar um exemplo: eu já tive alunos Criacionistas. A opinião deles que Deus criou a Terra não me afecta nada. É a crença deles e eu não tenho nada a ver com isso. Da mesma forma que a opinião do André Levy sobre financiamentos é para mim indiferente. Alguns desses meus antigos alunos até são agora amigos meus, logo pode haver tons conciliatórios certamente. Aliás, uma das coisas que um dos meus ex-alunos me dizia era que ambos concordavamos que os Brontossauros tinham morrido. E tinha razão. Ou seja, ambos partilhavamos dessa informação, o que é obviamente uma forma conciliatória. O que não me era indiferente, e não poderia deixar passar como verdade numa aula de astrobiologia, é quando eles vinham com a “opinião” que dinossauros e humanos partilharam a Terra há 4000 anos atrás. Isso é mentira. É a opinião deles, mas é baseada na ignorância científica sobre o tema em causa.
    O mesmo se passou nestes seus textos e comentários. Havia coisas em que estavamos de acordo, e coisas em que estamos em desacordo. O que não posso deixar passar é ignorância científica mascarada de opinião.

    Deixe-me dar um exemplo neste seu texto: extraterrestres inteligentes. A face mais visível desta “crença” é o SETI. Uma questão é sobre os resultados. O André Levy é da opinião que o SETI não irá encontrar nada. Poderia argumentar sobre isso. Não o fez. Eu conseguiria arranjar, pelo menos, 250 razões para fundamentar essa opinião. Ou seja, temos a mesma opinião. Uma 2ª questão diz respeito a se mesmo assim, eu poria o meu $$ lá. Eu colocaria, contra todas as “odds”. O André Levy não. Isto já uma questão pessoal, de opinião pessoal, que nada tem a ver com a parte objectiva. Uma 3ª questão diz respeito a se deverá ser financiado. E aqui poderá se abrir em duas partes: uma diz-nos que é financiado por capitais privados, de pessoas que, tal como eu, tomariam uma decisão pessoal de financiar. E o André Levy não tem nada a ver com a minha vida ou o que faço com o meu $$. Tal como eu não lhe digo o que fazer com o seu $$. A segunda parte diz respeito aos desenvolvimentos que o SETI tem trazido, àparte dos resultados nulos em termos de encontrar vida inteligente extraterrestre. E aí poderia-se falar nas áreas da educação, dos desenvolvimentos computacionais, entre outros. E isto são vantagens do SETI que o André Levy ignora na sua opinião, ou de propósito ou por desconhecimento do assunto.

    Concluindo, se eu fosse escrever um artigo de opinião sobre a sua área específica de doutoramento, tentaria informar-me sobre o assunto. E provavelmente até o contactava. Já o André Levy continua a ignorar pontos essenciais se queria ter uma opinião informada (exemplo actual: o caso do SETI).

  4. Já agora, coloquei um post no meu blog sobre isto, e sobre o texto a seguir.
    http://astropt.org/blog/2010/08/18/conhecer-a-terra-e-o-espaco-mais-uma-vez/

  5. Há claramente uma má interpretação de textos, que tentei esclarecer, pelos vistos sem grande sucesso. A minha intenção era expor uma opinião sobre financiamento: a troca de comentários é que se desviou o debate para outras questões. O último texto publicado era para tentar relembrar o meu tema original e esclarecer algumas questões que entretanto se levantaram. Não pretendi agora escrever um texto extenso a defender o financiamento do estudo do Mar (a minha preocupação central), embora afirmar que há um grande desconhecimento sobre o meio que ocupa 70% da superfície terrestre me pareça um argumento (breve). Fiz um contraste entre vida terrestre e vida extra-terrestre. Por não me querer desviar demasiado do tema central, neste último texto procurei corrigir que a minha afirmação categórica sobre a minha opinião em se encontrar vida extra-terrestres se restringia a vida inteligente. Podia ter expandido as razões desta minha opinião, mas isso pareceu-me desviar do tema central. Pelos vistos até concordamos sobre isso (e sobre isso só pode haver opinião, mais ou menos fundamentada; não é como o caso de coexistência de dinosaúrios e humanos que é uma questão de facto). Conheço o SETI. Até já tive durante um tempo o computador comunitariamente a usar o seu “tempo livre” para analisar os dados do SETI. Naturalmente quando falava de financiamento, não me referia a financiamento individual, embora tivesse implicações sobre financiamento privado corporativo e, associado a isso, à economia política da ciência. Por fim, claro que uma pessoa se deve informar o mais possível sobre uma área e usar argumentos fundamentados quando escreve sobre que tema seja. Num blog de divulgação científica, a responsabilidade é maior que num blog sobre a vida de cada um. Mas não podendo nós ser especialistas em tudo, não vejo que isso deva impedir-nos de escrever sobre outras áreas, tentando naturalmente evitar erros de facto, diferenciar o que é conjectura do que é algo aceite pela generalidade da comunidade científica. Se estes surgirem, que se gere uma troca de opiniões cordiais e construtivas.

  6. Olá,

    Em geral, concordo com tudo, mas infelizmente continua a parecer-me que o André Levy ainda não percebeu o porquê das críticas.

    O André Levy pode dizer que gosta mais de Rosas do que Orquídeas. Isso é a sua opinião. Como é sobre financiamento de ciência.
    No entanto, se disser que gosta mais de Rosas porque elas são azuis, então há aqui vários erros. Um deles é que as Rosas não vêm só na côr azul. Outro erro é que as Orquídeas também o podem ser, e logo esse argumento não pode ser usado para as diferenciar. Etc, etc, etc.
    Ou seja, pela 5ª vez, o problema não é a sua opinião sobre financiamento. O problema são os argumentos que utiliza.

    No texto anterior denotou desconhecer o que era astrobiologia, demonstrou desconhecer para onde ia o financiamento da astrobiologia, escreveu alguns erros de facto, etc, etc, etc (basta ler novamente o meu post).
    http://astropt.org/blog/2010/08/06/conhecer-a-terra-e-o-espaco/

    Desta vez, poderia defender a sua área, poderia ter explicado o porquê dos seus erros específicos no texto anterior, etc, limitando-se àquilo que aprendeu entretanto. Mas não. Neste texto, que reconheço que é em tom conciliatório, decidiu abrir mais alguns pontos de discussão onde claramente demonstra que não sabe do que fala (ex: SETI), e claramente envereda pelas “popular misconceptions” desse projecto (a menção ao SETI@Home no contexto em que o disse, por exemplo).

    E note que o meu comentário, mesmo que não pareça, também foi em tom conciliatório, daí que só critiquei a parte do SETI. Porque se eu quisesse continuar a corrigi-lo “ad infinitum”, poderia muito bem discutir a sua parte de Sagan, a parte de Exobiologia, etc, em que demonstra deficiências de conhecimento.

    “Mas não podendo nós ser especialistas em tudo, não vejo que isso deva impedir-nos de escrever sobre outras áreas, tentando naturalmente evitar erros de facto, diferenciar o que é conjectura do que é algo aceite pela generalidade da comunidade científica.”

    Totalmente de acordo.
    Só espero que passe a seguir esta sua recomendação, porque até agora não o tem feito. No texto anterior cometeu erros de facto. Neste texto e no anterior, utilizou o seu conhecimento popular, como se fosse conhecimento aceite pela generalidade científica. Ou seja, torno a dizer que essa é uma técnica dos pseudo. Esses sim, usam o seu conhecimento deficiente sobre certos assuntos científicos, para fazer valer a sua opinião sobre determinado tema. Ou seja, querem fazer passar a ideia que a ignorância deles sobre o assunto é mais importante que o conhecimento sobre o assunto.

    É óbvio que não podemos ser especialistas em tudo.
    Daí que a minha recomendação, pela 5ª vez, é que o André Levy tente se informar com especialistas no assunto em causa, ANTES de escrever ou dar opiniões sobre assuntos em que claramente demonstra deficiências de conhecimento.
    Falar sem conhecimento de causa, é um dos sintomas de iliteracia científica.

    abraço!

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